A DOR EM VERMELHO
«Importam-se de me escutar por um instante, só por um
instante? Apenas quero dizer-vos que fiz um filme para vós... Possivelmente só
para vós. Escrevi uma história acerca de 4 mulheres que se encontram durante
alguns dias em circunstâncias dramáticas. Escolhi 4 actrizes maravilhosas,
minhas amigas pessoais, para o desempenho dos vários papéis. Harriet Andersson,
Ingrid Thulin, Kari Sylwan e Liv Ullmann. Pedi ao meu amigo Sven Nykvist para
fazer o trabalho das câmaras pela forma habitual. Pedi aos meus restantes
colegas para virem de novo trabalhar comigo. Descobrimos uma antiga casa
senhorial, rodeada por um jardim tranquilo. Durante 40 dias trabalhámos na
feitura de um filme de que todos gostámos. O seu nome é "Lágrimas e
Suspiros". Se me perguntassem se o filme é bom ou mau, teria de responder:
'Não sei!' Tudo o que sei é que é um filme pelo qual tenho uma
particular estima. É por isso que vos convido a vê-lo. Quero que gostem dele.»
Poucos meses antes, Ingmar Bergman escreveu uma longa carta
que posteriormente enviaria a todos os elementos da equipa de filmagem de "Lágrimas e Suspiros". Aqui
fica um excerpto dessa carta:
«A acção desenrola-se no começo do século. As mulheres vestem
roupas requintadas, caras, que dissimulam e valorizam. Os interiores devem ser
construídos em função de todas as suas possibilidades de oferecer as condições
de luminosidade que desejamos obter: alvoradas que não se parecem com
crepúsculos, a luz doce de um bosque, a misteriosa iluminação indirecta dos
dias de neve, a luz atenuada de um candeeiro de petróleo, a doçura dos dias de
Outono com sol, uma vela perdida nas trevas da noite e todas as sombras
movediças. Haverá uma particularidade: todos os interiores serão
vermelhos, em tons diferentes. Não me perguntem porque devem ser assim, porque
não sei. Eu próprio procurei encontrar uma razão e descobri explicações, umas
mais tontas do que outras. A mais obtusa, mas também a mais defensável, é a de
haver a possibilidade de existir qualquer coisa interna, já que desde a minha
infância sempre vi o interior da alma como uma membrana humedecida com tintas
vermelhas.
Os móveis, as decorações e outros acessórios devem ser muito
exactos e devemos servir-nos deles segundo a nossa fantasia e na medida em que
se adaptem às nossas intenções. Como nos sonhos: Qualquer coisa existe porque
nós a desejamos ou dela temos necessidade nesse momento preciso. O drama
comporta quatro protagonistas. Quatro mulheres. Vou-lhes apresentá-las
rapidamente, sem qualquer ordem de classificação.
AGNÈS (Harriet Andersson) - É a proprietária da casa, que
habita desde a morte dos pais. Nunca se decidiu a deixá-la. Faz parte de si
desde o nascimento e nela deixou a sua vida derramar-se tranquila e imperceptivelmente
sem prazer nem desgosto. Ela tem vagas ambições artísticas, pinta um pouco,
toca às vezes piano, tudo de uma maneira um bocado patética. Nenhum homem
entrou na sua vida. Para ela, o amor ficou um segredo bem guardado e nunca divulgado.
Com cerca de 30 anos está atingida por um cancro no útero e prepara-se para
deixar o mundo com a mesma calma e resignação com que viveu. Passa a maior
parte do dia na cama, a grande cama do quarto de dormir dos pais. Mas ela pode
levantar-se de vez em quando, até que as dores a prostem de novo. Nunca se
queixa e não pensa que Deus seja cruel. Nas orações endereça a Cristo as suas
humildes esperanças. Está terrivelmente descarnada e o seu ventre inchou como
se estivesse grávida de vários meses.
KARIN (Ingrid Thulin) - Dois anos mais velha do que Agnès,
fez um casamento rico e instalou-se noutra região. Verificou depressa que o
casamento foi um fracasso. O marido, vinte anos mais velho do que
ela, só lhe inspira repugnância, física e moral. Mãe de cinco crianças, não
parece, no entanto, tocada pelas suas maternidades nem pela tristeza do seu
casamento. Aparece sempre irrepreensível e passa por arrogante e de contacto
difícil. A sua lealdade a respeito do casamento é inabalável. Mas este aparente
controlo de si mesma dissimula um ódio impotente contra o marido e um rancor
contra a vida. A sua angústia e o seu desespero só se manifestam nos sonhos,
que a atormentam de tempos a tempos. Não obstante esse furor contido, tem
momentos de afecto, de ternura e de convivência. Mas esta imensa riqueza
interior está escondida e inutilizada.

MARIA (Liv Ullmann) - É a benjamim das irmãs, também rica e
bem casada com um homem belo e de excelente posição social.
Tem uma filha de 5 anos e ela própria é uma criança mimada, doce, alegre,
risonha, constantemente curiosa e sensual. Dá um grande valor à sua própria
beleza e às possibilidades de prazer que o seu corpo lhe oferece. Não tem a
menor ideia do mundo que a rodeia, basta-se a si mesma e nunca se atormenta com
constrangimentos morais, perante si e os outros. A sua única regra é agradar.
ANNA (Kari Sylwan) - É a criada da casa. Com cerca de 30
anos, jovem ainda, teve uma filha que Agnès tomou à sua conta. Isto criou um
secreto laço entre as duas, uma amizade tácita e nunca expressa entre duas
mulheres sós. A criança morreu aos 3 anos, mas o laço entre elas permaneceu.
Anna é muito taciturna, muito esquiva, de contacto difícil. Está sempre
presente, vê, espia, escuta. Tudo é pesado em Anna: o seu corpo, o seu rosto, a
boca, o olhar. Não diz nada e talvez nem pense. Quando o filme começa, a
situação é a seguinte: A doença de Agnès agrava-se bruscamente e o médico
declara que ela tem já pouco tempo de vida. As duas irmãs (a sua única família)
vêm passar o tempo que lhe resta à sua cabeceira.»

Este é apenas o primeiro capítulo dos
dezasseis que compõem a carta escrita por Bergman
na ilha Farö, a 3 de Junho de 1971, uma 5ª feira. Tal como era usual na maioria
dos grandes cineastas, nada é deixado ao acaso, tudo é planeado ao mais pequeno
pormenor de modo que, quando chegasse o tempo da rodagem, bastava apenas filmar
tudo quanto se encontrava há muito visualizado na cabeça do realizador.
Raramente Ingmar Bergman terá ido tão
longe na expressão cinematográfica do sofrimento físico e moral, o quadro de um
universo sem esperança, a perseguição de seres feridos, encarcerados na sua
solidão: «Senti sempre uma impressão
estranha perante os mortos que pude ver à minha volta, na minha família ou
entre os meus amigos. Sempre tive, no momento em que morreram, ou nos instantes
precedentes, a impressão da sua solidão. A minha imaginação sempre foi
apaixonadamente alertada por esta solidão que precede a morte... Quando se
sofre, o sofrimento ajuda, mas quando se morre, está-se sózinho.»
Poucos cineastas terão levado tão longe
o dispositivo da representação e narração cinematográficas como Bergman e
poucos também, como ele, terão compreendido que a estética do instante perfeito
não tem a ver com o puro prazer formalista mas tem, sobretudo, a ver com a
necessidade da arte saber escolher os seus referentes e se denunciar
abertamente irreal, irrealista, artificial ou, se quiserem, demonstrativa e
exemplar. Finalmente, recusando agora a metafísica católica, a aventura de
Bergman continua a ser a do espírito, a de uma membrana interior a que ele,
aliás sem ingenuidade, chama alma e a que nós – à falta de melhor – poderíamos dar
o nome tão simples de consciência.
Esta obra de agonia poderia ser uma
ilustração literal da famosa frase de Cocteau:
«O cinema é a arte de filmar a morte em
acção.» Nesta fúnebre oratória, o autor cria areais de lirismo campestre
(as quatro mulheres de vestido branco passeando-se no parque), que alternam com
cenas de uma crueza absoluta (em particular aquela, horrorosa, em que Karin
afunda na vagina cacos de vidro). Doçura e dor estão indissoluvelmente ligadas
na imagem admirável da criada semi-nua com a morta nos seus braços no final do
filme, qual majestosa Pietá, que se converte num dos mais sublimes e
arrepiantes planos da história do cinema. E, em voz-off, ouve-se o que Agnès
escreveu na última página do seu diário:
«Dia de verão. Está fresco devido à proximidade do outono,
mas o tempo está bonito e calmo. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me.
É maravilhoso podermos estar juntas como dantes, quando éramos crianças.
Sinto-me muito melhor, pudemos até dar um passeio as três, um grande
acontecimento, sobretudo para mim que não saio de casa há tanto tempo. Passeámos
calmamente até ao velho baloiço suspenso do carvalho. Em seguida ficámos
sentadas as quatro (Anna também estava connosco) e deixámo-nos embalar, vagarosamente,
docemente. Fechei os olhos e senti o vento e o sol acariciarem-me o rosto. As
dores tinham desaparecido. Os seres que mais amo no mundo estavam ao pé de mim,
podia ouvi-las falar baixinho à minha volta, sentia a presença dos seus corpos.
O calor das suas mãos. Mantive os olhos fechados, queria reter esses instantes
e pensava: isto é certamente a Felicidade. Não posso desejar nada de melhor.
Neste momento, e durante alguns minutos, posso saborear a plenitude. E sinto-me
cheia de gratidão para com a minha vida que me dá tanto.»

O que mais me apaixona - é o termo - neste filme de
Ingmar Bergman é a serena simplicidade
da narrativa, em profundo contraste com o universo carregado de “gritos e
murmúrios” que povoa esta “homenagem à mãe”, como o próprio Bergman confessou. Neste
aspecto, neste silenciar de sentimentos gritados, neste serenar faustoso de
emoções em fúria, Tchekov seria o termo de comparação ideal e foi François Truffaut,
por isso mais uma vez certeiro, que disse que este filme começava como “As Três
Irmãs” e terminava como “O Cerejal”. Se se tratasse de Godard, bastaria dizer
que se falava “do mais belo dos filmes”, porque isso seria dizer tudo. Em
algumas entrevistas, Bergman declarou que, em “Lágrimas e Suspiros”, quis exprimir
quatro aspectos da sua mãe, uma mulher extraordinária, que ele adorava. Para o
filme, esforçou-se por descobrir alguma coisa dela. Sem pretender traçar um
retrato ou uma biografia, encontrou um meio de melhor a conhecer (e de melhor a
dar a conhecer), fazendo interpretar os diferentes caracteres por quatro
mulheres, três irmãs e uma criada.

Obcecado pelo tempo, “Lágrimas e Suspiros”
inicia-se por algumas panorâmicas sobre relógios que marcam o tempo. Da
natureza, onde reina a paz, para o interior de uma mansão sueca, nos fins do
século passado. Os relógios estabelecem esta ligação, caminhando da vida para a
morte, do exterior para o interior, da serenidade da madrugada para a agonia. «É
manhã e eu sofro», escreve Agnès (Harriet Andersson) no seu diário, depois
de ter olhado pela janela. Uma frase que encerra, desde logo, uma das
dualidades mais graves que o filme de Bergman procura analisar: nasce o dia e Agnès
morre lentamente. Nascimento e morte, dualidade que terá, no final do filme,
termos de uma equação equivalente; da morte (da Agnès) para o renascimento da
vida, nessa majestosa Pietá que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes
planos da história do cinema. Numa mansão da Suécia, portanto, em fins do
século passado (em Faro, mais precisamente, ilha para onde Bergman se costumava
desterrar, sempre que queria rodar um novo filme, irá assistir-se à agonia de
uma mulher: Agnès, no seu leito de moribunda. Sofre. Pelos sintomas, pode
pensar-se num cancro no útero. A doença mina o corpo que se crispa de dores e
grita a sua revolta, perante a impotência, o medo, o amor de quem a rodeia. À
volta de Agnès, duas irmãs: a mais velha, Karin (Ingrid Thulin), a mais nova,
Maria (Liv Ullman) e uma criada, Anna (KarI Sylwan). Agnès vivia isolada no
campo, acompanhada unicamente por Anna. Quando a morte se aproxima. Karin e
Maria viajam para junto da irmã, procurando auxiliá-la nos derradeiros momentos
de vida. Mas a doença, a dor, a proximidade da morte, finalmente, a presença
física de um corpo sem vida faz oscilar o equilíbrio existente entre as três irmãs.

Assim, se o centro de “Lágrimas e Suspiros” é,
efectivamente, a agonia de Agnès, essa agonia acaba por repercutir-se a vários
níveis, sendo como que a mola accionadora de um mecanismo que irá definir as
relações entre as irmãs, entre irmãs e respectivos maridos (relações estas
conhecidas através da introdução de alguns flashbacks) e entre irmãs e
criada. Através de uma despojada meditação sobre a morte (e a vida) o amor (e o
ódio), a dor e a doença (e a felicidade), Bergman retrata-nos uma época, uma
sociedade de privilégios e os preconceitos de uma classe, a falência de uma
instituição (o casamento) os laços instáveis de uma relação (a família), o
desespero de um mundo descrente de Deus (e a fé vertiginosa no homem e nas
possibilidades da sua obra), as relações de profundo desequilíbrio social que
se estabelecem entre as diversas classes (irmãs e maridos, em função de Anna),
etc. Um acontecimento motor desenrolará um mecanismo preciso. A genial maestria
de Bergman irá, porém, pôr a funcionar este mecanismo, desmontando-o, quase sem
qualquer tipo de ficção a servir-lhe de suporte. Na verdade, toda a “história”
de “Lágrimas e Suspiros” se resume a duas linhas: a agonia de uma mulher, assistida por
duas irmãs e uma criada. Não há, portanto, vestígios de uma intriga clássica. Situações,
sentimentos, emoções, memória, tudo isto resulta de uma admirável
mise-en-scène, na qual Bergman se serve predominantemente de olhares, de
gestos, de movimentos, por vezes imperceptíveis, de sons (toda a banda sonora
tem um volume de som aparentemente desmedido, fazendo com que os ruídos assumam
uma importância decisiva na criação de um ambiente de uma densidade invulgar),
de cor.

Sobre a cor. Raras vezes a cor adquiriu no cinema
um papel tão significativo como neste filme de Bergman. Tanto mais que a secura
e a nudez dos cenários, o hierarquismo das composições, a gravidade de todos os
movimentos (dos gritos aos murmúrios, do trágico estertor aos sussurros de
reconciliação) parecem participar no resfolegar sanguíneo, onde a preponderância
de tons vermelhos indica uma única substância unificando a vida e a morte: o
sangue. Na verdade, é o vermelho cor de sangue, quente e vivo, que dá a
tonalidade a esta célebre obra de Bergman: são as paredes da mansão, são as
alcatifas, são, sobretudo, as fusões de planos nas admiráveis viragens a
vermelho, donde emergem e onde desaparecem náufragos rostos. O vermelho, plasma
de vida e de morte, sinaliza toda a obra, pautando espaços, silêncios, unindo e
desagregando imagens. Nestes cenários de uma cor dominante, as figuras
centrais: de início, o branco dos «anjos da guarda» de Agnès (quando o filme principia,
as irmãs deixaram-se adormecer, velando por Agnès: a dominante é o branco de
uma pureza ofuscante). Depois, à medida que a morte vai ganhando terreno, o
negro do luto invade o écran. Mas, outras cores delimitam planos e cenas (o castanho,
com Maria, a filha e a boneca; o azul, quando Anna acorda e atravessa uma sala
por onde a manhã procura romper).

O rosto. O rosto, sua imagem e memória. Em "Lágrimas
e Suspiros", quatro rostos abrem como que o episódio relativo a cada um. Quatro
rostos de mulher, cada um deles interrogando-se sobre uma personagem;
"Agnès, Maria, Karin e Anna. Agnès, a moribunda, recorda a infância, junto
à mãe, cujos carinhos inveja. Um flashback reconstitui tempos passados:
uma sessão familiar com lanterna mágica. De resto, Agnès é uma figura de certo
modo neutra, passiva, limitando-se a lutar ingloriamente contra a morte. A sua
função, no interior do filme, é mais de centro aglutinador do que de sujeito de
acções. O cancro mina-lhe as entranhas que nunca conheceram contactos. Karin, a
irmã mais velha, é, por seu turno, a figura dominante. Violenta, odiando um
marido que despreza (um diplomata, cuja silhueta se descobre igualmente num
flash back), frígida e seca, Karin detesta qualquer tipo de relação física.
Para contrariar o marido, amputa-se, introduzindo no sexo um pedaço de vidro. Repele todas as hipóteses de relações possíveis (quando Anna a ajuda a
despir-se, manda-a embora, porque o olhar da criada lhe parece suspeito; com a
irmã, recusa quase sempre o diálogo, o contacto, com excepção de uma cena, que logo
renega). Maria, a irmã mais nova, frívola e sensual, casada com um marido mais
ou menos impotente, amante do médico da família, recorda também o suicídio
frustrado do marido, quando este descobre as relações existentes entre ela e o
médico. Receosa, apavora-se com a morte da irmã. No seu universo de frivolidade
e de instantes fugazes de prazer vividos numa casa de boneca, não suporta a
presença obcecante da morte. A única saída para tais encontros é a fuga.

Anna,
a criada, é a sombra da família, uma mulher humilde, dedicada, discreta,
silenciosa. No enquadramento dos planos de Bergman, Anna ocupa quase sempre um
plano secundário, afastado da câmara, movimentando-se por detrás das irmãs. É
também a presença reconfortante, quente, a dádiva generosa. Quando todos fogem da
morte, Anna é a única que despe a camisa e oferece o calor do seu peito ao
rosto frio de Agnès, que procura a paz e a doçura que lhe permitam transpor os
limites da vida e entrar no desconhecido. Tal como Agnès (mas de forma
diferente), Anna não tem um papel activo nesta obra que seria de um maior e angustiante
pessimismo sem a sua presença. Reservados para Karin e Maria os papéis activos
(elas detêm o poder, só elas podem resolver, mandar, deliberar) Agnès e Anna
assumem a solidariedade dos marginais. Tendo perdido uma filha, Anna faz de Agnès
a sua “menina”, que não se cansa de ouvir chorar e chamar por ela. Estes longínquos
chamamentos de fraternidade (que só Anna entende, que só Anna não teme)
conduzem a essa Pietá sublime de que atrás se falou. Mas o sublime não se
concentra neste plano indescritível. Perpassa por toda a obra, infiltra-se de
forma absoluta nessa figura de uma doçura inenarrável que Kari Sylwan
soberbamente interpreta. Na longa galeria de retratos de mulher que o cinema
até hoje nos ofereceu, esta Anna de Bergman ocupará, seguramente, destacado
lugar.

Quatro rostos num terrível huis clos. O
grito de Angès atravessando a casa: «Ninguém me socorre!». O olhar dos vivos, impotentes
perante o espectáculo da morte. A terrível angústia, expressa numa decantada
austeridade, numa secura, numa simplicidade de processos que definem um
“clássico”. Um filme onde Bergman se expõe integralmente. Com as suas dúvidas,
os seus temores, a sua esperança. Um Bergman barroco e metafísico, como o fora
Bergman de “O Sétimo Selo” ou “A Fonte da Virgem”? Não, um Bergman linear e
profundamente humano, atento ao instante, interrogando o homem,
num universo que Deus parece ter abandonado de vez. Quando a morte parece ter
conquistado terreno, quando a injustiça e a crueldade mesquinha dos interesses
se julgaria ter triunfado, eis que Anna retira do tempo um diário que abre e
soletra. É Agnès quem regressa, é a vida, o sol, a natureza que revivem. «Quarta-feira,
3 de Setembro. Sente-se o ar do Outono, embora tudo esteja ameno. Sinto-me
muito melhor. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me. É bom estarmos
juntas, como nos velhos tempos. Podemos até ir dar um passeio as três, é um
acontecimento para mim. Há muito que não saía de casa. Corremos a rir para o
velho baloiço, que não víamos desde crianças. Sentámo-nos as três e Anna
empurrou-nos devagar. Todas as minhas dores tinham passado. As pessoas de quem
mais gosto no mundo estavam comigo. Podia ouvi-las tagarelar. Senti a presença
dos seus corpos e o calor das suas mãos. Quis agarrar-me a esse momento e
pensei: Venha o que vier, isto é felicidade. Nada de melhor posso desejar.
Agora, por poucos minutos, posso experimentar a perfeição. Sinto grande gratidão
pela minha vida, que tanto me deu.» Excerto de um diário, de que se ouve
ler ainda uma passagem; «Quinta-feira, 30 de Setembro; Recebi a melhor
prenda que alguém pode ter na vida. A prenda tem vários nomes - solidariedade,
camaradagem, contacto humano, afeição. Creio que o que se chama graça.»

"Lágrimas e Suspiros" ("Viskningar
Och Rop", no seu título original) teria a sua primeira apresentação
pública em Nova Iorque, ainda em 1972, próximo do Natal, no dia 21 de Dezembro.
Em todos os outros lados, o público só teria acesso à última grande obra do
cineasta sueco durante o ano seguinte, inclusivé no seu país natal, a 5 de
Março, em Estocolmo. Em Portugal o filme foi estreado no dia 14 de Dezembro,
nos cinemas Apolo 70 e Pathé, mas a cena da introdução dos cacos de vidro na
vagina de Karin, foi de imediato cortada pela censura ainda existente no nosso
país. Curiosamente, é a única cena em que o sangue aparece neste filme. No que
me diz respeito, só tive oportunidade de ver esta obra-prima absoluta de Ingmar Bergman quase um ano depois, no
dia 15 de Novembro de 1974, uma sexta-feira à noite, no Teatro Manuel Rodrigues
em Lourenço Marques, então já sem qualquer corte. Sven Nykvist ganharia o Oscar pela melhor cinematografia e outras 4
categorias seriam também nomeadas: Filme, Realizador, Argumento original (todas
estas três creditadas a Ingmar Bergman)
e ainda o Guarda-Roupa (Marik Vos-Lundh).